domingo, 25 de janeiro de 2009

Monges saem da clausura e falam como é esta em um mosteiro,
Vestidos de batina preta, dois monges contam suas histórias, que envolvem muita fé, simplicidade, clausura e disciplina. Dom André e irmão João mostram ao Correio como é viver uma vida dedicada somente a Deus



De lá, se vê o Lago Paranoá. Tudo é muito amplo. O céu fica ainda mais infinito. Da parte de fora do casarão, a sensação é de imensidão. E há um silêncio que leva à contemplação, à percepção de que ali tudo é, de fato, diferente. Até a concepção de vida e seus valores. Até o sentido da morte. Estamos na QI 29 do Lago Sul, no Mosteiro de São Bento. É a primeira vez que uma equipe de jornalistas entra em todas as suas dependências. Ali, há uma gente que fala baixo, entoa cantos gregorianos e muda de nome quando se converte. Estamos no lugar onde a sensação da presença de Deus é do tamanho do silêncio que vem da sua clausura.Quem nos acompanhará nessa viagem de descoberta e mistérios são dois homens de batina preta e sandálias. Um se chama Dom André Rocha Neves, maranhense de 53 anos, sorriso bom, conversa camarada, jeito cativante, sotaque ainda original. Dom André é o prior (chefe) da ordem beneditina em Brasília. Também estaremos acompanhados do irmão João da Cruz, jovem pernambucano de 34 anos, sorriso contido, cinco meses em Brasília, sotaque inconfundível, tocador de violão, leitor contumaz, chefe de cozinha e o especialista em internet do mosteiro. A família de André, no interior do Maranhão, um dia o chamou de Arias. João, em Recife, foi batizado de Thulio, com “th” mesmo.Hoje, transformados, são prior e irmão. André passou por todas as fases que João ainda viverá. O rapaz professa agora os votos simples, que duram três anos, até chegar aos votos perpétuos. Deverá ser obediente, converterá seus costumes (votos de pobreza e castidade, por exemplo) e finalmente alcançará a estabilidade — direito de ser enterrado no próprio mosteiro. No meio da conversa, João da Cruz ainda se espanta: “Tem gente que acha que a gente não existe”.Essa gente existe, sim. Ri, chora, sente raiva, alegria, tristeza. Tem dor de barriga. Luta contra os medos e dúvidas, que são diários. Tenta hoje ser melhor do que foi ontem. Foi essa gente que recebeu o Correio, depois de muita negociação, para falar de vida. Dom André ri, fala de São Luís, e do tempo, quando jovem, em que jogava pelada na Praia de Ponta d’Areia. Confessa, meio envergonhado, que é fã da cantora Alcione, sua conterrânea. Ouve-a baixinho, em dia de faxina. “Não escreve isso aí, não”, ele pede, às gargalhadas.João da Cruz comenta sobre um e-mail de um rapaz que sonha ser monge. Hoje, o primeiro contato de um jovem com o mosteiro é pela internet. Há mais de 20 anos, quando Dom André largou o emprego federal para tornar-se monge e recluso, havia duas formas de se chegar ali: por meio de cartas ou batendo à porta do lugar. Ele preferiu a segunda. O tempo evoluiu. João da Cruz estudou em Nova York, nos tempos de intercâmbio escolar. Trabalhou num tribunal, em Recife, e foi dono de bufê. Hoje, vive numa clausura.Estranho sonhoArias sempre foi um homem voltado a Deus. “No Maranhão, fui seminarista”, ele conta. Com 22 anos deixou a casa da família para morar em Brasília. “Fiz concurso pro antigo Dasp. Passei e fui lotado no Ministério dos Transportes.” Arias seguiu sua vida. Morava no Guará, gostava de viajar e jogar futebol. Mas, um dia, alguma coisa começou a inquietá-lo. “Acho que era minha vocação me chamando”, ele deduz. O jovem rezou. Procurou o deus que tanto perseguia.Um dia, o inexplicável: “Sonhei que chegava a um mosteiro e os monges estavam em cima de um caminhão, indo para uma cachoeira. Entendi que era um chamado pra mim”. Passou a ler, escondido de todos, livros que falavam de vida monástica. O primeiro foi Os diálogos de São Gregório Magno. Num belo domingo, Arias pegou o carro e se dirigiu ao Mosteiro de São Bento, no fim do Lago Sul. Um monge o recebeu. Convidou-o para assistir à missa. Tempos depois, viajou para Olinda (PE). Foi conhecer o mosteiro da cidade histórica. Passou uma semana ali. “Me encantei cada vez mais”, admite.Pediu licença sem vencimento do trabalho. Enfiou-se no mosteiro e professou sua fé. Os amigos não acreditaram. Achavam que ele havia enlouquecido. Depois de um ano, era preciso voltar ou ser exonerado. Arias abandonou o serviço público. Deixou para trás uma vida inteira e dedicou-se aos estudos monásticos, à oração, ao silêncio, à contemplação e ao trabalho pesado no mosteiro. Mudou de nome. Arias virou André, nome do irmão de Pedro, o apóstolo de Jesus.Lá em Recife, aos 14 anos, Thulio bateu à porta do mosteiro de Olinda, depois de ter lido um livro sobre Santa Terezinha. Os monges aconselharam-no a pensar melhor no que pretendia de sua vida. Ele voltou, mas a vontade era de ficar. Viajou aos Estados Unidos, no intercâmbio escolar. Aos 21 anos, retornou ao mosteiro. Ficou um ano. Saiu. Foi viver a vida lá fora. Em 2003, aos 28 anos, mais uma reviravolta. Retornou ao mosteiro. “No dia em que paguei a última prestação do apartamento que tinha comprado, sonhei que estava num mosteiro, andando, sentindo o cheiro do lugar onde já tinha passado”, revela. E admite: “Tive medo de deixar tudo que havia conquistado, mas li a Sagrada Escritura e chorei. Senti-me amado por Deus. Precisava corresponder a esse amor”.Thulio venceu o medo. Despediu-se da família, dos amigos e enclausurou-se no Mosteiro de São Bento, em Olinda. Faz cinco meses que chegou a Brasília. Virou João da Cruz. Veste hábito preto e usa cavanhaque aparado. Tem cara de melhor aluno da sala. Responde e-mails de jovens com ânsia de se tornarem monges. “É um trabalho de evangelização, feito pela internet”, diz.Cada um dos monges vive em sua cela, também chamada de clausura. E obedecem a códigos e regras intransponíveis. Só o prior pode entrar em qualquer cela — pequeno quarto com cama de solteiro, mesinha, cadeira, guarda-roupa, banheiro. Tudo muito simples. Não há televisão nem computador. Eles mesmos limpam suas celas e lavam seus banheiros. E rezam. Rezam muito. Só deixam o mosteiro com autorização do superior. Sexo, dizem eles, é sublimado com oração. E a morte não traz lágrimas, mas alegria. “Quando alguém deixa de cantar aqui, vai cantar com Deus”, explica Dom André. Mas repara: “Isso não nos impede de sentirmos saudade”.Eles acordam às 5h da manhã, ao som do sino na clausura. Vinte minutos depois, começam as orações. Às 6h15, vão à missa, na capela. O café é pontualmente às 7h. E mais orações — são sete ao longo do dia. Meio-dia, almoço. Não se pode conversar durante a refeição. No refeitório, um monge lê, usando um microfone, trechos de livros sagrados. Outro se encarrega de servir a comida aos demais. Pausa para descanso. Trabalhos na confecção de medalhas, biscoitos e terços — tudo à venda na lojinha. O jantar é às 18h30. Às 21h, todos se recolhem em suas clausuras. Domingo, 10h, é dia da tão esperada missa ao som de cânticos gregorianos. O público se emociona. Lágrimas em silêncio invadem a capela do mosteiro.Conversão diáriaO mosteiro abre suas portas para hóspedes, gente que quer ficar em silêncio, meditar ou rezar. Aliás, é daí que vem a maior parte da sua receita. As visitas são aceitas nos fins de semana ou períodos de, no máximo, 15 dias. Mas o visitante só pode se dirigir ao monge hospedeiro, aquele que o recebe. Dom André supervisiona tudo: “Hoje, sou um homem transformado. Cresci, me tornei mais humano, mais caridoso também”, ele confessa. Irmão João emenda: “Aprendi a ter misericórdia de mim mesmo e das pessoas. E não é tolerância. Tolerância tem limite; a misericórdia, não”.O prior faz uma ressalva: “Às vezes, nos confundem com paróquia e querem que celebremos casamentos, batizado. Mosteiro é lugar de contemplação”. Assim, no meio do silêncio que berra, Dom André recebe, todos os dias, gente aflita, que chega em busca de aconselhamento, uma palavra, um rumo. Gente em busca dessa tal misericórdia. “A verdadeira felicidade está em Deus”, extasia-se o superior. E deixa escapar um segredo de clausura: “Quando canto salmos, minha alma parece dançar. Cada dia aqui dentro é uma conversão”.Sobre vocação, Dom André aconselha, principalmente os jovens: “É um chamamento. Aquele que vem só porque acha bonito o mosteiro não fica muito tempo. Vai logo embora. É uma vida de renúncia e provação. Eu não sou monge porque quero. Deus me chamou pra cá”. Essa gente, embora tão real, tão de carne e osso, parece não mesmo existir.

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